sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Mensagem

Em Dezembro de 1968, Vinicius de Moraes, a caminho de Roma para passar o Natal, encontrou-se em Lisboa com Amália para uma noite de poesia e canto. Também estavam Ary dos Santos, Natália Correia, David Mourão Ferreira e Alain Oulman. Esse encontro ficou gravado e foi editado em disco.
No final deste serão em casa de Amália, foi-lhe pedido que deixasse uma mensagem sobre a sua passagem por Portugal.


"Bom, me pedem para dizer as impressões que eu levo de Portugal. 
As impressões são as mais carinhosas possíveis. Um povo do qual eu descendo e no qual tenho as minhas raízes mergulhadas e que eu queria conhecer um dia. Porque eu sou um homem meio sem pátria. Não tenho pátria. Minha pátria é a Humanidade, mas de toda a maneira eu queria conhecer o povo português, queria entrar em contacto com ele. Um povo com um tremendo anseio de viver, e de aparecer e de reaparecer na História, né ?, esse povo heróico, que deu tantas coisas lindas, né ?, um povo que deu um poeta como Luiz de Camões, todo o cancioneiro português antigo que eu conheço tão bem e no qual eu embebi, do qual eu sofri uma grande influência.
Então, a impressão que eu levo deste povo, do meu contacto com... com ele e com os intelectuais, com os poetas, com as pessoas, é uma impressão assim de... ao mesmo tempo de beleza e de tristeza, né ?... engraçado !
Porque o contacto foi o mais amoroso possível - e esse é o único contacto que me interessa - mas ao mesmo tempo uma impressão de tristeza, de ver este povo tão formalizado ainda, né ?
Eu tenho a impressão de que o povo português precisava de se desengravatar, né ? perder assim... uma série de formalismos que ele conserva, né ?, de maneira que o que eu posso dizer ao povo português neste momento, a meus amigos portugueses que me trataram com tanto carinho, que tiveram tanta atenção comigo - inclusive uma atenção de que eu não me acho merecedor, porque eu acho que ainda também não descobri o meu caminho - é esta: despir-se do seu formalismo !
Esse é o grande problema do povo português, para mim, do que eu pude verificar aqui. Integrar-se na Grande Vida, né ? num negócio que eu também não sei como explicar, mas que eu acho que é fundamental para o ser humano. Comunicar-se cada vez mais. Amar-se, amar-se, sem problemas, sofrendo muito (o sofrimento faz parte do jogo, não tem importância).
Nós somos praticamente 100 milhões de seres humanos falando uma língua comum e a nossa poesia é comum de uma certa maneira. Nós temos os mesmos problemas, a mesma tristeza de conhecer o nosso semelhante de uma maneira que outros povos não conhecem, temos assim a... mesma doçura para viver, uma certa necessidade de se comunicar que outros povos não têm. Nós somos os últimos povos que amam e que cantam, né ? e que escrevem uma poesia direita, que tenta dizer qualquer coisa. 
A minha única mensagem que eu deixo aqui a vocês, hoje, na casa de minha querida amiga Amália Rodrigues - essa tremenda cantora, né ? que eu amo, cuja voz eu amo e que realmente transmite, para mim transmite assim o que seria, digamos assim, um Portugal verdadeiro - a única coisa que eu queria dizer a vocês é o seguinte: ROMPAM AS CADEIAS ! VIVAM ! AMEM ! AMEM-SE ! ROMPAM AS TRADIÇÕES ! ROMPAM OS PRECONCEITOS ! e aí eu tenho a impressão que cada um vai ser... pode, pode se tornar mais feliz, porque eu acho que o grande problema do ser humano é a felicidade. Cada um deve procurar a sua felicidade e ao procurar a sua felicidade procura, normalmente, a felicidade do seu semelhante, né ?
Não sei se eu disse muita bobagem, hem ?, mas eu disse isso aqui que disse para vocês com o maior espírito de verdade, de amizade e de compreensão.

... e agora eu quero ir para minha casa."

(em 'Amália / Vinicius', 1970, Edições Valentim de Carvalho SA) 

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